quinta-feira, 16 de setembro de 2010

039

Eu lembro o dia em que ela se foi e eu fiquei sentindo saudades do que não houve. O lugar é o mesmo. E eu aqui parado. E tem um advogado tentando ser notado falando alto ao telefone celular sobre, até onde posso entender, uma briga entre marido e mulher. Ao que parece ele, o marido, deu uma cabeçada na esposa. E o advogado grita ordens para uma pobre coitado do outro lado da linha. E eu no mesmo posto de gasolina daquele dia em que ela se foi me pedindo para ter paciência. Na rua, três homens bem vestidos desembarcam de um táxi e andam em direção à parede de vidro que nos separa. Vejo tudo pela transparência. A frente toda do café e loja de conveniências é de vidro. E no dia em que ela se foi eu também estava de chapéu. Não este de agora. Hoje estou com o meu apropriado para chuva; revestido com nylon. É que choveu o dia inteiro. Como naquele dia. Só que na época eu não tinha um chapéu especial para chuva. Eu nem pensava nisso. Eu estava apaixonado. Agora não está mais chovendo. Como no momento em que ela se virou; e saiu. A rua molhada. O advogado aos berros, sentado em frente ao seu laptop, avisa que o tal marido vai ser preso. Independente da vontade da tal esposa, que pelo jeito não está muito feliz com a tal prisão. Os três homens param próximos ao vidro. Um deles está com a mão direita por baixo do blusão de moletom vermelho que está sob um blazer de veludo verde musgo. O táxi ainda parado em frente à loja de conveniências. Naquele dia ela estava mais bonita do que de costume. E os olhos dela brilhavam. E ela trazia um sorriso dentro da bolsa. E eu ali parado enquanto ela se levantava da cadeira à minha frente. Eu só olhando. E o advogado ordena para a pessoa do outro lado da linha que registre tudo em um boletim de ocorrência; e que acalme a mulher. E afirma categórico que o homem será preso mesmo que a mulher não queira prestar queixa à polícia. E um dos três homens, o que tem a mão debaixo do blusão de moletom, tira uma coisa reluzente feito aço ali de baixo. O táxi com o motor ligado. E ele aponta a coisa reluzente feito aço para a parede de vidro transparente e dispara uma, duas, três, quatro, cinco, seis, sete vezes estilhaçando a vidraça. O advogado se cala. Os três homens entram rápido no táxi. E, antes de partir, disparam mais uma vez a esmo. E eu ali parado. Fingindo ter paciência. Alguém diz Alô!, do outro lado da linha. E pergunta, aflito, O que houve?! O que houve?! Lembro que ao se virar ela meteu a mão na bolsa e, em seguida, atirou-me o tal sorriso. O celular sujo de sangue. E eu enxergo o sorriso mais uma vez. E ouço, ao longe, a sirene da polícia. E fico imóvel. E penso que eu devia ter ido atrás dela. Devia ter insistido. Devia ter implorado. Devia ter ido atrás do que era meu. Da minha felicidade. Mas eu a deixei escapar. Como eu pude fazer isso?! Por que fui tão idiota?! Por que fui tão mesquinho comigo mesmo?! Por que fui tão egoísta?! A polícia chega. E junto com ela uma ambulância. E vejo o espocar de flashes de máquinas fotográficas. O prédio sede da empresa jornalística fica bem ao lado do posto de gasolina que abriga o café e loja de conveniências; ali do outro lado da rua. E ouço alguém dizer que o advogado ainda respira. E eu ali parado. E penso: e se ela resolver voltar e eu não estiver mais aqui?! Um aperto no peito. Uma falta de ar. E eu ali parado. E penso que nada vai adiantar. E penso... tento respirar... que se eu repetir três vezes Eu te amo, porra!, tudo vai dar certo. Tudo vai voltar ao normal. E vejo os olhos reluzentes, e o sorriso da bolsa e as costas dela indo embora. E o meu chapéu já não está mais na minha cabeça. E a chuva recomeça. Eu te amo, porra! Eu... te... am...o, ...por...ra!

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