domingo, 29 de agosto de 2010

021

Um homem, Josué Campoamplo, nasce na Porto Alegre das praias limpas. Aprende sobre o mundo e lê na solidão de sua biblioteca os textos malditos que falam que o universo é uma emanação da Unidade e um dia retornará à Unidade, e que as formas universais não existem fora das coisas. E que a alma dos seres humanos tende a transmigrar para o corpo dos animais. E ele crê no que lê, ou se diverte com a ideia de crer. E o seu maior desejo é obter reconhecimento. Em um dia de sol a pino em pleno inverno, Campoamplo deixa a sua morada situada no bairro Cidade Baixa e passa a falar com cães vagabundos. E aprende com eles astronomia, álgebra, apologética, poesia, culinária e medicina. E escreve, durante a tarde, um tratado de duzentas páginas de uma só vez, sem voltar para reler ou para revisar o que escreveu, sobre Deus e a fé, no qual afirma que Deus, talvez exista, talvez não, e como não há possibilidade de provas, nem para um lado, nem para o outro, não há razões para desperdiçar vida com o assunto. Assim sendo, a fé em ambos os lados e em outros mais é que deve imperar. Enquanto escreve, tem uma premonição. E morre em seguida, na hora do pôr do sol. O manuscrito desaparece e jamais é encontrado.


Sete décadas depois, em um dia de inverno de sol a pino, nasce, fazendo parte de uma ninhada de sete, em pleno Parque Farroupilha, um cão franzino que é adotado pelos frequentadores do parque, os quais, por algum inexplicável motivo, lhe dão comida e afagam a sua cabeça todo dia. O cão fica conhecido na cidade por fazer companhia aos frequentadores mais solitários que conversam com ele sem o menor temor de serem tachados de loucos.

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