Sim, não há caminhos; eles são feitos ao andarmos. E, para evitar voltar atrás, costumo apagar os meus rastros. Até o dia de encontrar o velho. Cabelos desgrenhados, barba longa e espevitada. Manhã de sábado. Vamos ao meu apartamento, fala sem mover os lábios. Por lá, os livros se acumulam pelo chão. Bebe alguma coisa?! Vinho?! Água?! Vinho e água?! Água, por favor. Traz-me vinho, o velho. Bebo um bocado e tenho vontade de cuspir. Olha-me, o velho. Engulo outra vez até entornar todo o conteúdo. Sinto náuseas. O que bebeste não era vinho, me diz ameno. Era sangue. Sangue?!, retruco. Sangue de quê?! O termo exato não é “de quê”, mas “de quem”. A vizinha do 402, Ariadne, desapareceu há três dias. E o cachorro dela, Teseu, também. O velho ri e balança a cabeça. Ri e balança a cabeça. Ri e balança a cabeça. Não enxergo direito, falo. E as imagens e os sons parecem me chegar em ondas. Me chegar em ondas. Chegar em ondas. Tu recebeste um presente. Um presente. Um presente. E o chão vira céu debaixo de mim. E o velho ri. E eu já não estou mais.
Quando acordo, me vejo em pleno sono. E meus rastros não podem mais ser apagados. O que não faz a mínima diferença. As paredes são altas demais e ando de lá para cá. Exausto construo asas de cera e penas e me dirijo ao sol. Quando chego ao solo já sou o pai, e o velho se foi. E a polícia está no prédio. Fazem perguntas. Digo que foi o velho. Do trezentos e dois. E dizem que não há velho no trezentos e dois. E que no trezentos e dois morava um casal jovem com um cachorro, que desapareceu; junto com a dona, que Dédalo, o gato do vizinho, comeu. E sinto o aço frio em meus pulsos.
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