sábado, 14 de agosto de 2010

006

Ela possuía grandes olhos e uma caneta Bic no bolso de trás. Eu não estava longe e, quanto aos olhos, só podia imaginar. Tudo ocorrera em uma madrugada de pontos luminosos. Alguns atos reflexivos nunca se perdem; por esperar, foram-se quarenta anos. E depois de tanto tempo fica difícil ir ao mar sem rever velhas decepções disfarçadas de melancolias. Por meia vida foram só percepções, impulsos, olhares, suposições e covardias. O mais honesto seria botar a culpa em alguém. Mas há um ponto do maduro que não permite mais os verdes. O ponto mais duro. E tudo vira saudade; até do que não leva a ela. O lugar é quente. Eu de casaco, manta, camisa de lã, botas e chapéu. Torço para que a caneta estoure. A mancha será em oval; e aniquilará com a calça. Sobrará também para os dedos; para as unhas; na hora da descoberta, na há como evitar. Eu poderia avisar. Mas agora sou mau. Dou até conselhos sobre como agir; em caso de desapontamento, procurar rapidamente o que fazer. Resta sempre o depois da meia noite e seus pontos de re-pós-iluminação. Eu precisava de uma taça de Malbec argentino e o calor do nó de pinho. Eu precisava rever conceitos; mais uma vez. Eu precisava não precisar. Impreciso, apressei o passo. Ela virou a esquina. Virei atrás. Não havia mais chão; nem céu, nem possibilidades de olhos grandes; ou manchas ovais. Só eu, a taça e a chama; ah, os pontos luminosos; e uma improvável certeza: nem se usa mais; canetas para reescrever.

Um comentário:

Ana Lúcia Pompermayer disse...

Matando com letras luminosas a saudade das tuas palavras.
Brilhante é experimentá-las.

Luz ao sábado.
Bjs.